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Guerra na Ucrânia. A evolução do conflito ao minuto

Donald Trump, o condenado candidato

Estar envolvido no infame ataque ao Capitólio, considerado o momento mais negro da História da democracia americana, ser o primeiro ex-Presidente dos EUA condenado num processo-crime ou ter passado por dois processos de destituição não impedem Donald Trump de acalentar fundadas esperanças de regressar ao comando do país mais forte do mundo.

O extremismo ideológico e político, a permanente atitude de confronto e desprezo por adversários, por aliados e pelas instituições dentro e fora dos EUA, o frequente recurso à mentira ou a meias-verdades maquilhadas em proveito próprio; tudo isto foi uma constante ao longo dos quatro anos de mandato de Donald Trump na Casa Branca, mas essas marcas eram já evidentes na feroz luta que travou com Hillary Clinton durante a campanha para as eleições presidenciais de 2016.
Make America Great Again
Correndo por fora contra republicanos influentes como Ted Cruz, Marco Rubio e Jeb Bush, filho e irmão de antigos presidentes dos EUA, o multimilionário nova-iorquino ganhou a nomeação pelo partido do elefante para candidato às eleições presidenciais de 2016, tendo como adversário do lado do Partido Democrata Hillary Rodham Clinton, um peso-pesado da política americana.

A antiga primeira-dama, ex-senadora e ex-secretária de Estado na administração de Barack Obama, era uma adversária com grande poder nos meandros políticos de Washington DC, vasta experiência governativa e à-vontade nos palcos internacionais. Estava, aparentemente, fadada para se tornar na primeira mulher à frente dos destinos dos EUA. Mas o novato Trump tinha os seus trunfos para contrariar tamanho desnível de favoritismo e começou a exibi-los bem cedo.

O argumentário de base populista, anti-imigração, de exaltação do nacionalismo e de viva reprovação do modo como o Governo dos EUA conduzia os interesses estratégicos do país no palco internacional já dera bons frutos durante a corrida pela nomeação republicana.

Conquistado o direito a disputar as presidenciais, com Mike Pence como número dois, Trump redirecionou toda a sua força contra o último grande obstáculo que se interpunha entre ele e a cadeira do poder na Casa Branca.

Sob a batuta estratégica de Steve Bannon, eminência ideológica da extrema-direita, a campanha de Donald Trump para as eleições de 2016 foi um vulcão de controvérsia em plena atividade, com propostas fraturantes como a da construção de um muro ao longo da fronteira com o México para combater a imigração ilegal vinda não só do país vizinho, mas da América Latina em geral.

A ideia, apresentada como prioritária, era estancar a entrada de “criminosos, membros de gangues […] e milhões de ilegais que vieram para cá usufruir das benesses sociais ou causar um esforço excessivo à rede de segurança”, perante a complacência da “corrupta" administração Obama, personificada na adversária do momento, Hillary Clinton.

Para além dos latino-americanos - mas não só - a comunidade muçulmana também foi visada diretamente pelo candidato republicano. Ficou célebre a expressão “Penso que o Islão nos odeia” usada por Trump para defender, durante uma entrevista na CNN, a proibição da entrada de muçulmanos no país.



Após um encontro com a poderosa National Rifle Association, o magnata advogou o fim das zonas de restrição do porte de armas, como bibliotecas e escolas; chegou mesmo a sugerir que professores fossem subsidiados para dar aulas armados, como remédio para acabar com os tiroteios nas escolas, um flagelo que toca especialmente a sociedade americana.
No plano internacional, Trump considerava admissível ponderar a utilização de armas nucleares contra o Estado Islâmico, então na sua máxima força. Também não o chocava que países como o Japão, a Coreia do Sul ou a Arábia Saudita passassem a dispor de engenhos atómicos nos respetivos arsenais.

Inúmeras ideias literalmente bombásticas como estas eram disparadas em catadupa em cada uma das aparições públicas do candidato a Presidente, gerando um frenesim mediático que as mantinha sempre no topo de todos os noticiários. Para isso contribuía o facto de Donald Trump não ter pejo em retocar fortemente ou até mesmo desmentir as próprias palavras, por vezes no mesmo dia da afirmação original.
“A boa publicidade é preferível à má; contudo, em termos gerais, a má publicidade é, por vezes, melhor do que nenhuma publicidade. Em suma, a controvérsia vende”.

Trump: A Arte do Negócio, 1987
 

A propósito da falta de coerência do discurso político de Donald Trump, a NBC fez um levantamento muito curioso (e exaustivo) dos numerosos avanços, recuos, afirmações e contradições (muitas delas flagrantes), acusações e teorias conspirativas protagonizados pelo candidato republicano no período da campanha presidencial de 2016.
O poder das fake news
Passou a ser uma atividade diária nas redações jornalísticas americanas e mundiais (e também na de grupos dedicados ao fact-checking) escrutinar todas as declarações de Donald Trump num fino crivo analítico, ou um muito produtivo exercício de 'descubra as diferenças'.

Uma rede que não raras vezes, também apanhava mentiras.

Trump chegou aos píncaros da política americana numa altura em que o consumo da informação produzida pelos órgãos de comunicação profissionais, publicamente escrutinados e balizados por critérios éticos e deontológicos firmemente fundados nos princípios democráticos começou a decair fortemente, cedendo terreno para os infinitos universos alternativos que as redes sociais possibilitam.

O Twitter, onde o magnata manteve presença assídua, foi canal por si privilegiado para a propagação de um discurso fraturante, onde se incluíam notícias falsas - produzidas por empresas que se dedicam a essa atividade perniciosa, mas muito popular nas redes sociais – e outro material distribuído intencionalmente com fins subversivos, como é o caso de teorias de conspiração provenientes de grupos situados nas franjas da sociedade, alguns deles de ideologia neonazi.
 

Ligado à Universidade da Pensilvânia, o factcheck.org, website dedicado a analisar e denunciar a desinformação na política americana, foi um dos muitos organismos do género a declararem profunda surpresa pelo inaudito caudal de fake news retransmitidas por Donald Trump, que o próprio mantinha com insistência mesmo quando confrontado com provas contrárias.

Como seria de esperar, os adversários democratas também não foram poupados a essa barragem de fogo digital com que Donald Trump e respetiva entourage quiseram limpar de obstáculos o caminho republicano para a Casa Branca. Dois breves exemplos são a retoma da teoria conspirativa, na altura já com alguns anos, que punha em causa a nacionalidade e a crença religiosa de Barack Obama, o Presidente cessante; e a infame e surreal – mas viral - história que ficou conhecida como Pizzagate, onde se desenrolava um sórdido enredo que envolvia a campanha de Hillary Clinton, uma rede de pedofilia e uma pizzaria em Washington.
Russiagate
Quatro meses antes das eleições, o FBI abriu uma investigação sobre as crescentes suspeitas de existência de um conluio entre elementos da equipa republicana e a Rússia para sabotar a campanha de Hilary Clinton e influenciar o eleitorado a favor de Trump. O plano, que seria supostamente supervisionado pelo próprio Vladimir Putin, consistiria na violação da rede informática da Administração norte-americana para expor informação confidencial que pudesse prejudicar Clinton e, por outro lado, na criação de milhares de perfis falsos nas redes sociais para distribuir fake news danosas do lado democrata.

Sempre negado pelo candidato republicano e por Moscovo, o escândalo assumiu contornos de incidente diplomático entre os dois países, com Barack Obama, já nos últimos dias de mandato, a advertir diretamente Vladimir Putin, a determinar sanções económicas à Rússia e a ordenar o encerramento de diversas instalações diplomáticas russas, expulsando o respetivo pessoal do país.

Depois de mais de um ano de diligências e muita controvérsia, o relatório final da investigação, elaborado pelo Procurador especial Robert Mueller, redundou na incapacidade de produzir provas categóricas de conspiração, mas identificou “numerosas ligações entre indivíduos relacionados com o governo russo e indivíduos relacionados com a campanha de Trump”.

Então já investido como Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump não desperdiçou a oportunidade para se declarar uma vez politicamente perseguido pelos democratas.
A eleição
Em 8 de novembro de 2016, Donald Trump recolheu menos cerca de três milhões de votos do que Hillary Clinton, mas o sistema eleitoral americano, que compreende uma votação a dois tempos – primeiro popular e depois pelos representantes eleitos proporcionalmente por cada estado –, determinou que seria o multimilionário da construção civil e TV personality a tornar-se no 45.º Presidente dos Estados Unidos da América - o mais velho de sempre até então, com 70 anos.
Os primórdios
Oriundo de uma das inúmeras famílias de raiz europeia que atravessaram o Atlântico no fim do séc XIX em busca do sonho americano, a Donald John Trump nunca faltou nada desde que se anunciou ao mundo, em junho de 1946.

Nascido em berço de ouro, no centro de um império imobiliário iniciado nas primeiras décadas do séc. XX, mas potenciado pelo boom económico que o pós-II Grande Guerra levou aos EUA, desde cedo o nova-iorquino começou a evidenciar os sinais da truculência que hoje todos lhe reconhecem; uns como defeito, outros como virtude. Relata o próprio Trump no livro The Art of The Deal que aos 13 anos deu um shiner (olho negro) a um professor da Academia Militar para onde foi estudar por decisão do pai, que via o rigor da instrução marcial como uma possível solução para a irreverência do filho.

À inclinação para os desportos exibida durante a adolescência juntou-se o interesse pelo negócio familiar, o que levou o universitário Donald Trump a cultivar-se nas áreas de Economia e Gestão de empresas.

Em 1968, ano de conclusão dos seus estudos académicos, um atestado médico aparecido na hora H diagnosticou o atleta de 22 anos e 1,90m de altura como permanentemente inapto, o que lhe permitiu escapar definitivamente à guerra no Vietname. Para trás ficavam outros quatro bem-sucedidos pedidos de adiamento da incorporação, ao abrigo da condição de estudante, que o declaravam apto para o serviço militar. Cinco décadas mais tarde, este golpe de sorte continuaria a ser tema de conversa.
Caminho livre para os negócios

Com o diploma no bolso e o Vietname arredado do caminho, Donald podia finalmente encarar o futuro a longo prazo e perseguir a ambição de se tornar no “rei do imobiliário em Nova Iorque”.

Enquanto se esquivava ao alistamento militar e completava os estudos, Trump foi fazendo o tirocínio de business man na empresa familiar. Assim, em 1971, aos 25 anos, tinha já experiência e confiança suficientes para assumir as rédeas do império que até então havia sido liderado pelo pai com grande eficácia. Mas o jovem lobo queria mais.

Mudou o nome do conglomerado de empresas para Trump Organization, alterou o foco do negócio, que até então se baseava num extenso portfolio de unidades residenciais em Brooklyn e Queens e passou a investir em projetos imobiliários de luxo em Manhattan. Foi lá, na famosa 5.ª Avenida, que construiu a faraónica Trump Tower, novo quartel-general responsável por um número crescente de hotéis, casinos, campos de golfe ou condomínios privados que, ao longo dos anos, se foram expandindo para outras latitudes dos Estados Unidos e do estrangeiro.
You’re fired!
O caminho de Donald Trump para o paraíso empresarial passou também pela indústria do entretenimento. Adquiriu os direitos de concursos de beleza premium, como o Miss Universo, e foi campeão de audiências como autor e apresentador do reality show de televisão The Apprentice, na NBC, programa em que os concorrentes competiam por um contrato com a Trump Organization. Os que ficavam pelo caminho em cada programa eram despedidos pessoalmente pelo próprio Donald com um sonoro e agressivo You're fired!, expressão que se tornou famosa.

Nessa altura, Donald Trump tinha crescido além da figura de rei do jet-set nova-iorquino para se tornar numa personagem familiar em todos os lares dos Estados Unidos e, para muitos, um exemplo brilhante e inspirador do sucesso à americana, romantizado ainda mais por uma sequência de fracassos estrondosos dos quais acabou sempre por regressar.

Apesar de famoso, o apelo da política só muito mais ganhou tração no espírito do magnata. Os arquivos mostram que Donald Trump considerou brevemente a hipótese de uma candidatura à Presidência dos EUA em 2000, em nome do Partido Reformista, grupo que tinha tido o seu apogeu eleitoral quatro anos antes, com os quase 9 por cento dos votos conquistados por Ross Perot.

A hipótese voltaria a ser avaliada mais seriamente em 2012, já como republicano e já ensaiando em ambiente político o estilo agressivo que se tornou imagem de marca, mas a decisão de avançar para a Casa Branca só se materializou em 2015, quando se anunciou definitivamente como candidato às eleições de novembro do ano seguinte.
“Not my President!”

No fim da noite eleitoral, conhecidos os resultados, o triunfante Donald Trump ensaiou breve mudança para um tom mais presidencial. Prometeu liderar todos os norte-americanos e adotou uma atitude mais amena para com Hillary Clinton, que recentemente prometera atirar para a prisão se fosse eleito, mas a quem nessa noite acabou a agradecer pelos serviços prestados ao país.

A novidade da aparente moderação de Trump não convenceu. Ao longo das semanas seguintes, dezenas de protestos irromperam nos principais centros urbanos dos Estados Unidos, com muitos milhares de pessoas a manifestarem revolta contra a eleição do republicano e contra o conjunto de valores que representava, para além do facto de ter ficado três milhões de votos atrás de Hillary Clinton. Esse sentimento extravasou as fronteiras do país, com manifestações de cariz idêntico a acontecerem um pouco por todo o mundo.


Contrariando todas as sondagens, Donald Trump chocou o mundo político ao tornar-se no primeiro Presidente dos Estados Unidos, sem qualquer nenhum tipo de experiência de liderança política ou militar. Iniciado em janeiro de 2017, o seu mandato de quatro anos revelou profundas fraturas na sociedade americana e a sua abordagem à governação foi tudo menos convencional.

Outros Presidentes tentaram unir o país, passado o tempo de luta sem quartel que é uma campanha eleitoral. Trump, pelo contrário, pareceu sempre pronto para o antagonismo, do primeiro ao último dia de desempenho do cargo. Usou o púlpito presidencial para manter uma longa lista de adversários, desde membros da sua própria administração e do seu partido a elementos do Partido Democrata, chefes de Estado estrangeiros e os órgãos de comunicação social.

“Tolerância zero”
Na semana em que se instalou na Sala Oval, Trump pôs em vigor um pacote legislativo que aplicou grandes restrições à imigração, em especial a lei que ficou conhecida como “Muslim Ban” por visar particularmente alguns países muçulmanos. Um grande setor da sociedade americana reprovou a medida e milhares de pessoas participaram em protestos contra a concretização desta promessa eleitoral que, embora temporariamente suspensa por ordem judicial, se manteve até ser revogada pelo Presidente seguinte.

Ainda neste capítulo, outra medida que causou consternação generalizada foi uma prática de controlo de entradas usada maioritariamente na fronteira com o México, que permitia a separação de famílias de imigrantes ilegais que estivessem acompanhados de menores no momento da detenção. Os adultos seriam acusados, presos ou deportados, as crianças ficariam à guarda dos serviços sociais norte-americanos.

Apresentada como um “projeto-piloto”, esta medida fria e brutal esteve em vigor de abril a junho de 2018, tempo suficiente para que mais de cinco mil crianças tenham sido separadas dos pais.

Muros e outros bloqueios

Donald Trump iniciou a construção do prometido muro na fronteira com o México, mas a obra pouco avançou. Ainda assim, o suficiente para que o conselheiro principal de Trump, o radical Steve Bannon, fosse implicado num esquema de fraude e branqueamento de capitais relacionado com a angariação de verbas para a construção do muro. Em 2021, a construção do muro foi definitivamente cancelada pelo sucessor de Donald Trump na Presidência, Joe Biden.

No plano internacional, a retirada do Acordo de Paris sobre alterações climáticas chocou o mundo e, mais uma vez, dividiu o país, com vários governadores de Estados a unirem-se para contrariar o Presidente e manter os compromissos assinados por 195 países em 2016. De novo, Joe Biden aboliu a decisão de Donald Trump assim que chegou à Casa Branca, em 2021, e os EUA regressaram a este tratado internacional.

No início do mandato, Trump promoveu forte descida dos impostos sobre famílias e empresas, o que se revelou mais positivo para os beneficiários de maiores rendimentos e agravou a desigualdade entre os diferentes estratos sociais. Aumentou o investimento federal, o que se traduziu numa forte subida do défice orçamental. No entanto, a conjuntura económica favorável levou o país a uma situação próxima do pleno emprego, que se manteve até à eclosão da pandemia de Covid-19.

Prosseguindo a prometida política de protecionismo destinada a fazer disparar a produção nacional, agravou a tributação de importações de produtos provenientes, entre outros, da China e da União Europeia, com Pequim a retaliar de igual forma e proporção, num conflito entre os dois colossos que teve, e continua a ter, repercussões globais.

Em junho de 2018, poucos meses depois de ter prometido, em plena sede das Nações Unidas, vaporizar totalmente a Coreia do Norte, o imprevisível presidente americano encontrava-se em Singapura com Kim Jong-Un para uma cimeira inédita onde foi assinado um acordo que previa o estabelecimento de “novas relações” entre os dois países e a “completa desnuclearização da Península Coreana”. No final, um entusiástico Trump declarava que a ameaça nuclear colocada pela Coreia do Norte deixara de existir. 

Os meses seguintes passar-se-iam num aparente idílio entre os dois líderes. Trump chegou mesmo a revelar que tinha havido paixão correspondida em Singapura. Mas a relação seria complicada e efémera, perante a acumulação de provas de que o país asiático prosseguia o seu programa nuclear e balístico. No Vietname, em fevereiro de 2019, uma reedição da cimeira Trump-Kim terminou abruptamente, sem acordos assinados. A histórica visita de Trump à zona desmilitarizada que divide as duas Coreias, para novo encontro com Kim Jong-Un, também não produziu frutos, apesar do aparato e da injeção de otimismo com que foi descrita. Hoje, o arsenal norte-coreano é mais imponente que nunca.

Por outro lado, o aparente clima de bonomia entre Trump e Putin, mais as fortes críticas do líder americano à União Europeia, qualificada como “inimigo”, bem como à NATO, numa altura em que a questão ucraniana se agravava diariamente, causavam preocupação na Europa.
Impeachment #1
Aberto formalmente pela Câmara dos Representantes em dezembro de 2019, o primeiro processo para a destituição de Trump continha duas acusações. Uma, de abuso de poder, consubstanciada em supostas pressões para que a Ucrânia influenciasse o resultado das próximas eleições presidenciais americanas: o Presidente Zelensky deveria anunciar publicamente a abertura de uma investigação à atividade empresarial da família Biden naquele país europeu. A intenção seria desacreditar e enfraquecer politicamente a forte possibilidade de Joe Biden (que havia sido ‘vice’ de Barack Obama) ser escolhido para representante do Partido Democrata na corrida presidencial de 2020, o que acabou por acontecer.

Se Zelensky não cedesse à vontade de Donald Trump, o castigo seria o congelamento do envio de um pacote de ajuda militar que já tinha sido aprovado pelo Congresso e com o qual a Ucrânia contava para combater os separatistas pró-russos no leste do país.

Relacionada com a primeira, a segunda acusação alegava que Donald Trump havia instruído o staff da Casa Branca para não colaborar com as investigações ao caso, o que configurava um crime de obstrução ao Congresso.

Enquanto isso, o Presidente dos EUA acusava repetidamente os democratas de perseguição política e exigia o fim de um impeachment “ridículo”.

Em fevereiro de 2020, o Senado americano, ao qual incumbe julgar estes processos e que, ao contrário da Câmara dos Representantes, era dominado pelo Partido Republicano, absolvia Donald Trump.

O magnata escapava a uma bala, mas ficava para a História como o terceiro Presidente dos Estados Unidos a ser impugnado, depois de Andrew Johnson, na segunda metade do séc. XIX, e de Bill Clinton, em 1998. Nenhum recebeu a condenação do Senado.
Pandemia
A pandemia global de Covid-19 apanhou os EUA no mais longo período de prosperidade económica de sempre, após quase 11 anos de crescimento sustentado. A crise sanitária foi a causa da queda a pique numa conjuntura de profunda recessão que fez a taxa de desemprego disparar da casa dos 4 por cento em março de 2020 para perto dos 15 por cento apenas um mês depois.

O primeiro caso de Covid-19 nos EUA foi reportado a 20 de janeiro, mas, tal como em todo o mundo, a reação inicial de Donald Trump foi de desvalorização da dimensão da catástrofe que se avizinhava. “Está tudo sob controle. [O caso de covid identificado nos EUA dias antes] é uma pessoa que veio da China e está controlado. Vai correr tudo bem”, garantia o Presidente a 22 de janeiro. A própria Organização Mundial de Saúde só declarou a pandemia a 11 de março, quando o coronavírus já tinha alastrado para mais de 100 países.

No início de abril, já com o balanço de mortes no país a aproximar-se de 20 mil, os elogios que Donald Trump até então viera endereçando à OMS passaram a acusações de “falhanço na obtenção, análise e divulgação atempada e transparente” sobre a gravidade da situação, de “alarmante falta de independência face à China”, de “erro perigoso” na oposição inicial à restrição de viagens internacionais. Argumentos com que Trump justificou a ameaça de saída dos EUA da OMS, formalizada em julho, mas anulada meses depois pelo Presidente seguinte, Joe Biden.

Ao mesmo tempo, o líder americano começava também a dar palco à tese de responsabilidade ou mesmo de intencionalidade da China na propagação global do coronavírus, prometendo consequências se tal for provado.

O prestigiado imunologista Anthony Fauci fez recentemente, no magazine americano The Atlantic, um relato da sua experiência como um dos líderes da task-force de especialistas criada por Donald Trump para orientar a resposta do país à emergência crescente.

Nesse testemunho fala de como a ânsia de Trump em que a Covid-19 fosse um fenómeno efêmero que lhe permitisse deitar mãos à obra para os trabalhos de preparação do ciclo eleitoral que se avizinhava o levou a perder o foco sobre as decisões que se impunha tomar e a obrigar o especialista a contradizer publicamente o Presidente em diversas ocasiões.

Um dos exemplos dados por Fauci é a fixação que Trump teve em medicamentos antimaláricos como a hidroxicloroquina, que a dada altura considerou como a poção mágica contra a pandemia, sem que isso tivesse real fundamento científico.

O médico revela que lhe chegou a ser atribuído um destacamento de segurança pessoal, depois de ter sido detetada na dark web informação sobre uma onda crescente de hostilidade proveniente de grupos que consideravam que estava a minar a autoridade do Presidente.

Mas de entre as declarações mirabolantes de Trump sobre este assunto sobressai aquela em que deixou a comunidade médica – e não só – pasmada quando sugeriu injeções de desinfetante para eliminar o coronavírus causador da Covid.

A 26 de março de 2020, os Estados Unidos tornaram-se no país com maior número de mortes e de infeções por Covid-19 em todo o mundo, posição que mantiveram até ao final da pandemia.
A reeleição frustrada
A campanha eleitoral para as presidenciais de 2020 apanhou o país mergulhado na pandemia, numa crise económica profunda, politicamente ultra-polarizado e, por consequência, socialmente inquieto. A morte de George Floyd às mãos de agentes da polícia de Mineápolis, em fins de maio, funcionou como sal lançado sobre uma ferida aberta e provocou uma onda de protestos nunca vista no país, a que se juntaram inúmeras manifestações à escala global.

Estimativas apontam em média para a participação de cerca de 20 milhões de americanos em centenas de manifestações contra a brutalidade policial, algumas delas marcadas por violência, atos de vandalismo, fogo posto e pilhagens.

Donald Trump exigiu aos governadores dos diversos estados que agissem de forma decisiva para conter os tumultos. Os governadores democratas foram especialmente visados pelas críticas.

Num dos muitos tweets irados que Trump disparava diariamente, o Presidente usou uma expressão proibida: “when the looting starts, the shooting starts”, referindo-se a uma situação particularmente difícil que estava a decorrer em Mineápolis.

O Twitter marcou esta publicação como “exaltação da violência” e passou a apresentá-la desfocada. No meio da reprovação geral a mais um tweet incendiário de Trump, foi-lhe também colada uma conotação racista, recordando que a expressão em causa havia sido usada por um chefe de polícia em Miami no auge da luta do Movimento dos Direitos Civis, meio século antes.

Quando os EUA foram a votos para decidir quem conduziria o país nos quatro anos seguintes, a taxa de popularidade de Donald Trump estava numa das fases mais negativas, só ultrapassada poucos meses depois.

Os resultados eleitorais refletiram isso e Trump perdeu a reeleição, o que já não acontecia desde 1992 com Bush sénior.

Numa análise feita imediatamente após a divulgação dos resultados, um correspondente da BBC em Nova Iorque teoriza que as razões da derrota de Trump em 2020 são as mesmas que lhe deram a vitória em 2016: a sua condição de outsider da política tradicional, capaz de dizer o que até então ninguém diria. Só que o crónico comportamento excessivo e, de vários modos, censurável do Presidente ao longo do mandato afastou admiradores em número suficiente para lhe extinguir as possibilidades de reeleição.

No fundo, prossegue o autor, Trump falhou ao não conseguir - ou ao não tentar - expandir a forte base de apoio, que o segue fielmente a um nível semelhante a um culto. Fraturante, Donald Trump nunca procurou eficazmente seduzir os eleitores na órbita do Partido Democrata.

Como exemplos dos traços de personalidade mais dissuasores, é-lhe frequentemente apontada a propensão para declarações conotadas com racismo, xenofobia e intolerância pela diversidade religiosa; o repetido falhanço em condenar adequadamente os movimentos supremacistas brancos; a menorização de grandes aliados tradicionais no plano geopolítico e a admiração manifestada várias vezes por figuras autoritárias como Putin; negacionismo ambiental e climático; o uso de uma linguagem, por vezes, mais própria de um chefe mafioso; os múltiplos e variados escândalos em que se viu envolvido.

E, claro, o espantoso caudal de afirmações falsas ou truncadas com que Donald Trump defende os seus interesses e pontos de vista. Num impiedoso exercício de fact-checking, o jornal The Washington Post contabilizou 30.573 mentiras ou meias-verdades proferidas ao longo do mandato.
Mau perder

Devido ao confinamento e às precauções inerentes à pandemia, verificou-se um número recorde de votos antecipados e por correspondência. Estes últimos obrigaram a estender o período de contagem para lá do habitual, o que atrasou a divulgação dos resultados em alguns dos chamados swing states, estados cujo histórico de votação oscilante entre os dois grandes partidos se torna decisivo para apurar o vencedor.

Ainda a contagem dos votos não havia terminado, Donald Trump surgia em público para denunciar a suposta manipulação do processo eleitoral a favor de Joe Biden e autoproclamar-se vencedor.

Trump e a sua fação mais leal empenharam-se ativamente nesta narrativa ao longo dos meses seguintes, mesmo com decisões judiciais contrárias à tese de fraude em que a candidatura derrotada se barricava.

Incomodados pela insistência em acusações sem produção de provas que as sustentassem, figuras graúdas da ala republicana começaram a distanciar-se ostensivamente do Presidente cessante. Das mais variadas formas, incluindo o recurso ao Twitter, personalidades como o antigo Presidente George W. Bush, o irmão e ex-governador do Texas Jeb Bush, o senador Mitt Romney, a ex-secretária de Estado Condoleeza Rice e muitos outros felicitaram publicamente o Presidente eleito, Joe Biden.

William Barr, detentor da posição que em Portugal corresponde a Procurador-Geral da República, declarou formalmente a 1 de dezembro que o Departamento de Justiça “não encontrou indícios de fraude generalizada passíveis de alterar o desfecho das eleições presidenciais de 2020”. A declaração enfureceu Trump, que o nomeara para o cargo. Menos de duas semanas depois, Barr estava demitido.

Em 6 janeiro de 2021, uma manifestação entusiasticamente encorajada por Donald Trump juntou milhares de apoiantes nas imediações do edifício do Capitólio, em Washington, onde o Congresso se aprestava para homologar a vitória de Biden nas presidenciais.

Save America
Entre os manifestantes encontravam-se membros de milícias paramilitares e outros grupos de extrema-direita, como os Proud Boys, os Oath Keepers ou os Three Percenters, de ideário nacionalista e neofascista, e partidários da teoria de conspiração QAnon, um sucedâneo largamente aditivado do Pizzagate, referido anteriormente.

Após um longo e inflamado discurso de Donald Trump, que repetiu a acusação de fraude eleitoral e encorajou os apoiantes a marcharem sobre o Capitólio, centenas de elementos mais violentos da manifestação dirigiram-se para o edifício-sede do poder legislativo americano e forçaram a entrada, sem que o reduzido e desprevenido dispositivo policial ali presente o pudesse evitar.

Apoiantes do Presidente cessante dos EUA, Donald Trump, invadiram violentamente o Capitólio, em Washington, na quarta-feira, enquanto os membros do Congresso estavam reunidos para formalizar a vitória do Presidente eleito, Joe Biden, nas eleições de novembro. Pelo menos quatro pessoas morreram e 14 polícias ficaram feridos. Foram detidas 52 pessoas.

Os invasores envolveram-se em confrontos com a polícia e vandalizaram as instalações. A cerimónia de homologação dos resultados eleitorais foi suspensa e o Capitólio foi evacuado. Um primeiro balanço dos distúrbios apontou para quatro mortos, todos do lado dos manifestantes, mas um polícia viria a morrer mais tarde no hospital, sucumbindo a ferimentos recebidos no ataque.


A primeira reação de Trump ao assalto demorou mais de uma hora e deu-se pelo Twitter, apesar da proximidade entre a Casa Branca e o Capitólio. Passaria outra hora até difundir um vídeo em que dizia explicitamente aos amotinados para abdicarem da violência e para se retirarem. Duas horas depois, já passada a crise, Trump voltaria ao Twitter para apelidar os manifestantes de “grandes patriotas”.

Aquele que foi descrito como o episódio mais negro da História democrática dos EUA assombrou o país e chocou o mundo, com os principais líderes internacionais a expressarem consternação.

Devido ao modo como lidou com o assalto ao Capítólio e à forte perceção pública de que estava nele envolvido, Donald Trump ficou mais isolado que nunca. Por altura da transição do poder na Casa Branca para Joe Biden, a taxa de popularidade do republicano estava em mínimos históricos e até o Twitter anunciou a “suspensão permanente” da sua conta, retirando-lhe a tribuna favorita, que haveria de recuperar passado pouco mais de um ano, quando a rede social mudou de nome e passou para as mãos de Elon Musk, um admirador e apoiante.
Impeachment #2

Um inédito segundo processo de destituição de um Presidente americano foi aberto contra Donald Trump pela Câmara dos Representantes uma semana depois, a 13 de janeiro, sete dias antes da transição de poder. A acusação argumentava que Trump tentou subverter os resultados das presidenciais de 2020 e cometeu crime de incitamento à insurreição nos acontecimentos de 6 de janeiro.

Por seu lado, a defesa contrapunha que tudo não passava de uma "caça às bruxas" com o objetivo de impossibilitar uma futura recandidatura de Trump à Presidência.

Tal como no primeiro impeachment, a relação de forças entre democratas e republicanos no Senado não permitiu que a acusação recolhesse a indispensável maioria qualificada. A votação de 57-43 a favor da condenação de Trump resultou na sua absolvição, a 13 de fevereiro.
Trump, o regresso

Após os acontecimentos no Capitólio, a carreira política de Donald Trump parecia morta e enterrada. Alguns dos seus colaboradores mais chegados, a maioria das principais figuras republicanas e os grandes financiadores renegaram o ex-Presidente. Mas a sua enorme base de apoio popular manteve-se, o que lhe garantiu a manutenção de grande influência no Partido Republicano.

Só os mais desprevenidos se terão surpreendido com o anúncio da sua intenção de entrar na corrida para a Casa Branca em 2024. Era um de mais de uma dezena de pretendentes ao ticket republicano, incluindo o seu antigo vice-Presidente, Mike Pence, mas cedo se viu que nenhum estava à sua altura.

A então alegada perda de faculdades intelectuais do rival democrata, Joe Biden, de 81 anos, era o foco dos violentos dos ataques de Trump, apenas três anos mais novo. O que é certo é que o problema da decadência intelectual de Joe Biden se tornou real e evidente para todos, ao ponto de o Partido Democrata ter entrado em modo de emergência para encontrar uma solução, que recaiu em Kamala Harris.


A 13 de julho deste ano, Trump foi alvo de um atentado, do qual saiu ligeiramente ferido, mas politicamente ainda mais revigorado. A 15 de julho, o Partido Republicano aclamava-o como candidato nomeado para as eleições presidenciais de novembro.

Donald Trump chega a estas eleições com vários processos judiciais pendentes e com a pouco invejável reputação de ser o único Presidente da História americana condenado num processo-crime, relacionado com ações criminosas para encobrimento de um escândalo sexual. No entanto, ao apresentar pedido de recurso da sentença, o recandidato conseguiu empurrar possíveis consequências para depois das eleições.


Diligências equivalentes estão também a ser usadas pela defesa de Trump para protelar o desfecho de outros processos: o da investigação da Comissão de Inquérito aos ataques contra o Capítólio; o da alegada conspiração para reverter a derrota no estado da Geórgia, em 2020; ou o processo em que Trump é acusado de se ter apossado ilegalmente de documentos confidenciais já depois de deixar o cargo, em 2021.

Aparentemente, nada disto parece ter grande importância para a base de apoio, uma vez que as sondagens mais recentes mostram que não há um claro favorito e qua a vitória poderá pender para qualquer dos lados.

Se Trump perder, voltará a falar em batota? E o que fará, nesse caso? Em breve saberemos.

Fotos: Reuters